eu, cão de rua
recebi seu afago
aceitei seu biscoito
lambi sua mão
mas sou só
cão de rua
seu amor foi todo meu
até a chegada do próximo cão
não dividiu o cigarro
não bebeu do mesmo copo
não me ofereceu um espaço
não me recebeu com abraço
e apesar de péssima anfitriã
seu corpo me acolheu
se fosse mar, teria afogado
se fosse lar, teria ficado
e caso haja dúvida
do porquê arremeti
meio dia eu te amei
mas por falta de retorno
meia noite eu parti
para ler esta poesia
seu cérebro gastará
uma caloria
a cada quatro calorias
uma vira pensamento
um beijo
gasta cem calorias
beijar e pensar
no que está acontecendo
é o único exercício
que faço por gosto
e sem sofrimento
entendi um dia desses
que conversa boa
é quando o assunto não some
e se some
o silêncio conversa
conversa boa é dada
como saliva trocada em beijo
no final
tudo misturado
uma coisa só
mas em bocas diferentes
foi em uma segunda-feira
que nos beijamos pela primeira vez
em um sofá que não era seu
de uma casa que não era sua
tudo tinha cheiro de mofo
e mesmo com tudo velho
era tudo novo
meu rosto
a um palmo de distância do seu
em um instante não estava mais
lembro do gosto de café
o tom de tabaco
o cheiro de casca de árvore
eu senti meu coração parar
e senti ele voltar
nesse instante percebi
assim que o beijo acabar
não será mais segunda-feira
vou te manter em cárcere privado
te acorrentar ao pé da cama
te sufocar em uma coleira
vou lamber cada centímetro da sua pele
e pesar meu corpo contra o seu
se eu der um tapa
espero um sorriso de volta
e quando sua respiração estiver ofegante
quero ouvir que sou seu
quero seu gosto na minha boca
todos os gostos
para quando eu te soltar
você escolha ficar
como síndrome de Estocolmo
a cama treme como rede de peixes
e molha como rede de peixes
se fosse barco, afundaria
como é quarto, o mundo sustenta
teu corpo treme como cardume de peixes
e faz do chão meu lago
dentro d'água eu respiro
e com dois dedos você se afoga
no banco de trás do carro
sua perna encosta na minha
e eu deslizo a mão sobre ela
quando o carro faz a curva
seu corpo me prensa contra a porta
então aperto sua coxa
quando a rua fica reta
não solto sua perna
e mesmo depois
com o carro parado
ou se tivesse capotado
eu não a soltaria
cheguei como dono do lugar
tudo era extensão de mim
eu podia tocar o telhado
podia tirar os quadros
trocar as almofadas por estiletes
queimar a casa e
beber mil copos d'água no incêndio
vivi das suas colunas
me sustentei em seu alicerce
e devorei tudo que pude levar à boca
se eu mudasse todos os móveis
e quebrasse todos os espelhos
por quanto tempo você me teria
entre suas instáveis paredes?